Saturday, June 20, 2020

Prevenção da cárie: ética e metodologia

   

     A cárie afeta a qualidade de vida das pessoas e consome recursos destinados à saúde. Para a prevenção dessa doença, é usual indicar compostos de fluor. Mas diferentes autores têm sugerido, além do fluor, o uso de gomas de mascar (chiclete), principalmente para crianças e jovens. Pesquisadores da Universidade de Michigan conduziram um estudo coorte duplamente cego com 40 meses de duração em Belize, América Central, no período de 1989-1993 para comparar o efeito de diferentes gomas de mascar sobre a incidência de cáries 1.

 

    Participaram desse estudo 1.277 crianças, com idade média de 10,2 anos, distribuídos em nove grupos: 1) Nenhum controle sobre o uso de goma de mascar; 2) Goma com açúcar em barra fina, cinco vezes por dia; 3) Goma em pastilha adoçada com sorbitol, cinco vezes por dia; 4) Goma em pastilha adoçada com 45% de xilitol/30% de sorbitol, cinco vezes por dia; 5) Goma em pastilha adoçada com 15% de xilitol/45% de sorbitol, cinco vezes por dia; 6) Goma em barra adoçada com 60% de xilitol três vezes por dia; 7) Goma em barra adoçada com 60% de xilitol cinco vezes por dia; 8) Goma em pastilha adoçada com 65% de xilitol três vezes por dia; 9) a em pastilha adoçada com 65% de xilitol cinco vezes por dia.

 

    O uso de goma de mascar foi feito durante o horário escolar, sempre supervisionado. O desfecho primário foi o desenvolvimento de uma lesão de cárie sobre a superfície de dente considerado hígido na primeira avaliação. Os resultados sugeriram que o uso sistemático de gomas de mascar à base de polialcoóis reduz a incidência de cárie em indivíduos jovens, com gengivas saudáveis. Gomas de mascar com xilitol foram mais efetivas do que as gomas com sorbitol para reduzir de cárie. As misturas de xilitol e sorbitol foram menos efetivas do que as gomas com xilitol apenas, mas significantemente melhores do que o controle, que teve menos cáries do que aqueles que mascaram gomas com sacarose.

     Que o hábito de mascar chicletes adoçados com xilitol, um substituto do açúcar não fermentável pela microflora oral, faz diminuir a incidência de cárie é ideia razoável, embora o mecanismo de ação ainda não esteja devidamente esclarecido. Mas o xilitol pode ter outra indicação, porque in vitro diminui o crescimento de Streptococcus pneumoniae, como acontece com o Streptococcus mutans. Isso sugeriu o ensaio clínico conduzido na Finlândia com 306 crianças, com idades em torno de cinco anos 2. Elas foram distribuídas em dois grupos: um grupo, denominado controle positivo, recebeu goma de mascar com sacarose e o outro, denominado de intervenção, recebeu goma de mascar adoçado com xilitol (8,4 g/dia). O desfecho primário foi um episódio de otite média aguda. As crianças foram seguidas durante dois meses. A conclusão do estudo foi a de que a goma de mascar com xilitol parece ter efeito preventivo sobre a otite média aguda.

 

    O que chamou minha atenção para este estudo foi o comentário 3 que o segue, intitulado “What about ethics?”. Aliás, li primeiro o comentário que explica as razões porque um comitê de ética britânico não concordaria com a condução do ensaio feito na Finlândia. O uso de gomas de mascar contendo sacarose tem risco para a saúde dental das crianças suscetíveis a cárie. O tempo do ensaio foi curto, mas cria-se o hábito? Os pesquisadores sabiam do risco, mas o ignoraram. E as crianças não foram acompanhadas por um odontopediatra.

  

    Essas duas pesquisas – a de Belize e a da Finlândia – foram conduzidas na década de 90, quando já havia leis e normas internacionais para a condução de pesquisas em seres humanos. Então, não há como considerar que poderiam ter sido conduzidas, na forma em que foram. De qualquer forma, elas me lembraram do Den-den, um chiclete dos anos 80 desenvolvido no Brasil, quando ainda não havia a ANVISA, mas um departamento menor de vigilância sanitária, ligado ao Ministério da Saúde. Como eu me lembro da celeuma criada com o Den-den, resolvi buscar as pesquisas que levaram à criação do produto, para descrever as preocupações  que existiam na odontologia, nesse tempo.


    O gluconato de clorexidina é um antisséptico químico, com ação antifúngica e bactericida, capaz de eliminar tanto bactérias gram-positivas quanto gram-negativas. É usado em enxaguantes orais (Periogard). É geralmente prescrito pelo dentista após cirurgias ou para tratamento de gengivite, por curto período de tempo. Os efeitos colaterais mais comuns associados aos enxágues orais com gluconato de clorexidina são: 1) escurecimento dos dentes; 2) aumento na formação do cálculo; e 3) alteração na percepção do paladar, se usado no longo prazo.

      Por conta dos efeitos colaterais, que podem incluir, inclusive, alergia ao produto, os enxaguantes orais com gluconato de clorexidina só devem ser usados quando indicados por um dentista. Procurei, então, os ensaios que deveriam ter sido feitos para se chegar à fórmula do chiclete. Não encontrei qualquer outra informação além da citação de uma nota prévia 4.

 

    Achei, porém, três artigos publicados quando o Den-den já era comercializado, ainda nos anos 80. O primeiro artigo 5 descreve um ensaio feito com crianças de “diversas” idades e “os mais diversos” hábitos de higiene bucal e alimentação. Não é dada a proveniência dessas crianças, nem o número delas. Foram feitos quatro mapeamentos dos dentes contendo placa dental: no início, décimo, vigésimo e trigésimo dias após o início do ensaio. Logo após o primeiro mapeamento, foram fornecidas gomas de mascar com gluconato de clorexidina (Den-den) às crianças, com a recomendação de mascar duas vezes ao dia, por pelo menos 15 minutos. Não há descrição de qualquer tipo de supervisão. Os resultados indicariam, segundo os autores, que o uso de duas gomas de mascar ao dia, por 15 minutos, é eficaz como agente antiplaca.

 

    O segundo artigo 6 traz a descrição de um ensaio feito com seis estudantes de odontologia que cursavam a mesma faculdade, com idade média de 20 anos, todas de sexo feminino.  No início, foi obtido o índice de placa bacteriana para ser a linha de base e feito polimento. O ensaio durou 12 dias e foi dividido em quatro fases. A primeira fase, que durou três dias, serviu de controle: as participantes não fizeram qualquer tipo de higiene bucal. Foi então medido o índice de placa e feito polimento. A segunda fase do ensaio teve três dias de duração. As participantes também não fizeram higiene bucal, mas mascaram todos os dias chicletes adoçados com sacarose por meia hora, após as três principais refeições (marca Ping-pong). Foi então medido o índice de placa e feito o polimento. As participantes iniciaram a terceira fase do ensaio, que consistiu em mascar todo dia, por meia hora, um chiclete adoçado com sorbitol e manitol (marca Trident), depois das três principais refeições, sem outros cuidados de higiene bucal. Novamente, foi medido o índice de placa. Depois, foi feito polimento e as participantes iniciaram a quarta fase do ensaio, que consistiu em, sem fazer higiene bucal, mascar todo dia, por meia hora, chiclete da marca Den-den, adoçado com sacarose e contendo gluconato de clorexidina, após três refeições. Segundo os pesquisadores, “qualquer goma de mascar é capaz de reduzir um alto índice de placa bacteriana”. 


    O terceiro artigo 7 encontrado traz, comparando duas gomas de mascar, uma convencional não identificada e o Den-den: 1) análise da inibição da formação de placas em humanos; 2) análise da dissolução de placas em humanos; 3) análise da atividade anticariogênica em ratos e depois uma análise química do Den-den.

Da análise da inibição da formação de placas, 50 alunos da mesma faculdade de odontologia participaram como voluntários. Feita a revelação de placa para servir de linha de base, procedeu-se a uma profilaxia completa. Os alunos foram então instruídos a não escovar os dentes durante o período do ensaio, mas apenas mascar as gomas. Como o ensaio era duplo cego, administrou-se uma das marcas comerciais dos chicletes por quatro dias para os alunos, com a recomendação de mascar três tabletes por dia durante 15 minutos. Fez-se então a revelação das placas e profilaxia. Depois, os alunos receberam a outra marca, com as mesmas recomendações. Fez-se, em seguida, a revelação das placas. Iniciou-se, então, a segunda fase do ensaio, para a análise da dissolução de placas. Participaram 42 dos 50 alunos que haviam participado da fase anterior do ensaio. Eles permaneceram dois dias sem escovar os dentes. Foi feita a revelação de placa para servir de linha de base. Depois, os participantes foram divididos em dois grupos: um grupo deveria mascar goma convencional por 15 minutos e o outro grupo deveria mascar Den-den, também por 15 minutos. O ensaio era duplo cego. Fez-se, em seguida, a revelação das placas. Procedeu-se, então à análise da atividade anticariogênica, usando ratos de laboratório. Trinta ratos, com idades de 20 e 21 dias, foram divididos em três grupos: o primeiro recebeu Den-den adicionado à ração, o segundo recebeu chiclete convencional adicionado à ração e o terceiro só ração. Os pesquisadores concluíram que o Den-den não apresenta atividade antiplaca, nem anticariogênica. A análise química de dois tabletes de Den-den revelou cerca de 70% de sacarose e uma quantidade mínima de clorexidina (aproximadamente 0,02 mg /tablete).


    O fato é que a vigilância sanitária do Ministério da Saúde proibiu a comercialização do chiclete Den-den em 1984 por, segundo noticiado 8, não concordar com o texto de publicidade do chiclete, que dizia: ”O chiclete Den-den combate as cáries e protege os dentes”. Na verdade, o produto havia sido registrado na Divisão de Cosméticos e Higiene (DICOP), número 7.590/82, com a informação “ajuda a evitar a cárie e não a combate”. Segundo o fabricante, eram vendidas cerca de 50 milhões de unidades por mês.

    

    Mas o que se dizia à boca pequena no meio odontológico é que o chiclete era cariogênico. A explicação era simples: fabricado por uma fábrica de doces de Americana, cidade do interior do Estado de São Paulo, foi considerado necessário, no processo de fabricação, juntar açúcar ao chiclete  porque isso melhorava o gosto.  


    O episódio Den-den parecia encerrado quando achei, por acaso, em uma revista da ABO, um editorial 9 relatando o estudo de Belize, acrescido de comentários extemporâneos sobre o Den-den. De começo, o editorial diz que “sorbitol, xilitol ou gluconato de clorexidina... (são) ingredientes que os pesquisadores testam para avaliar a eficácia da goma de mascar na redução da cárie e da placa dental”. Parece haver um engano: os pesquisadores testam as vantagens de adoçar chicletes com açúcares não fermentáveis, mas não está em estudo a adição de antissépticos bucais aos chicletes com sacarose (o açúcar comum, mais barato) para reduzir o efeito da sacarose sobre a microflora bucal. Diz também que essa “goma (Den-den) foi colocada na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, na época com 40 mil pessoas”. Teria sido feita uma pesquisa científica na Rocinha com o chiclete Den-den? E o editorial continua: ”Os resultados foram significativos porque as famílias pobres dali não usavam, sequer, escova de dente. Com a goma, duas vezes ao dia, a redução da placa, principalmente nas crianças, era de 60%”. Cadê os dados?


    Mas o nível de competência na pesquisa em odontologia no Brasil melhorou muito, nestas últimas décadas. Apesar do editorial da ABO, tão fora de época, também encontrei pesquisa séria sobre o assunto 10. Por exemplo, uma revisão sistemática feita aqui no Brasil, buscando artigos em português, inglês, alemão, espanhol, sempre excluindo todas as pesquisas sem a devida metodologia, concluiu que são necessários mais estudos para confirmar o possível efeito de chicletes sem açúcar na redução de cárie. Sem entrar no mérito da conclusão, que não é minha área de trabalho, posso afirmar, lendo o artigo, que em termos de saber conduzir um trabalho de pesquisa na área de odontologia, o avanço no Brasil foi notório.  



O gluconato de clorexidina é um antisséptico químico, com ação antifúngica e bactericida, capaz de eliminar tanto bactérias gram-positivas quanto gram-negativas. É usado em enxaguantes orais (Periogard). É geralmente prescrito por um dentista após cirurgias ou para tratamento de gengivite, por curto período de tempo. Os efeitos colaterais mais comuns associados aos enxágues orais com gluconato de clorexidina são: 1) escurecimento dos dentes; 2) aumento na formação do cálculo; e 3) alteração na percepção do paladar, se usado no longo prazo.

Referências

1.    Mäkinen KKBennett CAHujoel PPIsokangas PJIsotupa KPPape HR JrMäkinen PL. Xylitol Long-Term Study - Belize J Dent Res.(12):1904-13. 1995. Xylitol chewing gums and caries rates: a 40-month cohort study.http://www.xlear.co.za/wp-ontent/uploads/2013/01/Belize-Chewing-Gum-Studies.pdf

2.    M Uhari, T Kontiokari, M Koskela, Marjo Niemela Xylitol chewing gum in prevention of acute otitis media: double blind randomized trial. BMJ (313) 9 November 1996 p. 1180-1183.

3.    Gerald B Winter, Commentary: What about the ethics? BMJ (313):11831996; p. 1184. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.313.7066.

4.    Neder, A.C. e cols. Chiclete anticárie (Nota prévia). Vila Franca de Xirpa, Portugal. Vida odontológica (8): p 404. 1981.

5.    Garlipp, Olympio F; Dias, Narcisa Marcondes. Controle da placa com goma de mascar. RGO (Porto Alegre) 34 (2):177-9, mar.-abr. 1986.

6.    Lacaz Netto, Rogério; Macedo, Nelson Luiz de; Rossetini, Stela Maria Ouvinhas. Gomas de mascar e placa bacteriana: efeitos das gomas de mascar Ping-pong, Trident e Den-Den sobre a formação da placa bacteriana - Estudo piloto. RGO (Porto Alegre) 34 (2): 107-10, mar.-abr. 1986.

7.    Pinheiro, Carlos Eduardo; Vono, Astrid Zaramella; Pavarini, Aymar; Bijella, Maria Francisca Thereza Borro; Bastos, José Roberto de Magalhães; Moraes, Ney; Silva, Odila Pereira da. Goma de mascar contendo Clorhexidina: avaliação da sua capacidade antiplaca e anticárie.

     RGO (Porto Alegre) 33(1): 67-70, jan.-mar. 1985.

8.    Jornal do Brasil, 25/7/84 Fabricante do chiclete Den-den diz que erro é do texto da publicidade.

9.    Editorial. O sorriso do chiclete. Rev. ABO Nac. (2) Fev./Mar.. 1994.

10.  Steffen Mickenautsch; Soraya Coelho Leal; Veerasamy Yengopal; Ana Cristina Bezerra; Vanessa Cruvinel Sugar-free chewing gum and dental caries – a systematic review. Bauru, Journal of Applied Oral Science. (15): 2, mar. / abr. 2007.

 


Tuesday, June 16, 2020

Vacinas: fases da pesquisa

Não importa quão promissora seja uma vacina ou quão apaixonados sejam os pedidos para seu uso, há que se fazer uma série de testes antes da experimentação em humanos. A pesquisa de uma nova vacina deve seguir, obrigatoriamente, uma série de fases.

Fase pré-clínica

A fase pré-clínica de uma pesquisa é feita primeiramente em laboratório, in vitro, e quando necessário, in vivo, em animais. Os testes e os necessários relatórios devem justificar estudos clínicos a serem feitos em humanos.

Fase clínica

Os testes em seres humanos são feitos segundo uma sequência que às vezes se sobrepõem. Mas é importante saber a sequência, que é compartimentada em fases da pesquisa clínica.

Fase I: a primeira fase é conduzida com um número pequeno de adultos saudáveis (por volta de 20), para obter informações prévias sobre a tolerabilidade da vacina, por meio da avaliação de parâmetros clínicos e laboratoriais. Nesta fase, a maior preocupação é com a segurança.

Fase II: maior número de pessoas participa desta fase, que tem a finalidade de fornecer informação preliminar sobre a eficácia e a segurança da vacina, isto é, se é segura e é capaz de produzir o efeito desejado (em geral, imunogenicidade) na população à qual se destina.

Fase III: é nos resultados desta fase que se baseia a decisão da concessão da licença para a comercialização da vacina. Os ensaios, multicêntricos, devem incluir controle e randomização e comprovar a segurança e a eficácia do produto. Para iniciar esta fase, é preciso que a vacina esteja completamente caracterizada e estejam descritos o processo de fabricação final, as especificações e os procedimentos para liberação dos lotes.   

Fase IV: nesta fase de pós-comercialização são coleadas informações em grande número de pessoas, sobre a segurança e a eficácia da vacina. Há vigilância contínua dos vacinados sobre eventos adversos, mas principalmente efeitos colaterais raros, que só podem ser detectados em um grande contingente de pessoas.

VEJA:

Vieira, S. e Hossne, W.S. Metodologia Científica para a área da saúde. Rio de Janeiro, Elsevier. 3 ed. 2015.

World Health Organization (WHO). Guidelines on clinical evaluation of vaccines: regulatory expectations. Technical Report, Serie No. 924. 2004. Annex 1.

 


Monday, June 15, 2020

Achatar a curva: o que significa?


A expansão do COVID-19 é comumente monitorada pela variação percentual, que se obtém dividindo o aumento do número de casos em um dia pelo número de casos existentes no dia anterior. Por exemplo, se ontem havia 50 casos e hoje são 55, o aumento do número de casos foi 5. Dividindo 5 pelo número de casos existentes ontem, que neste exemplo é 50, você encontra 0,1, ou seja, 10% de variação percentual, de ontem para hoje.  O mesmo raciocínio se aplica para obter a variação percentual de óbitos.

Mas a expressão “crescimento exponencial também ficou comum para expressar o crescimento muito rápido de novos casos e de óbitos atribuídos ao COVID-19. No entanto, ainda há dificuldade de entender o que significa crescimento exponencial. Na matemática, dizemos que uma sequência de números está crescendo exponencialmente quando cada número da sequência é igual ao anterior multiplicado por uma constante maior do que 1. Então a curva cresce indefinidamente. Veja a sequência de números dados em seguida, em gráfico na Figura 1. O crescimento é exponencial.


Na fase inicial, a expansão do COVID-19 pode até ser vista como uma exponencial. No entanto, essa expansão não segue um modelo exponencial. As epidemias acabam com o esgotamento dos suscetíveis ou, como se diz, com a imunidade do rebanho. O número de novos casos aumenta rapidamente, atinge um pico e depois diminui. Isso é chamado de curva epidemiológica, um gráfico estatístico usado para mostrar o início e a progressão de uma doença. Os dados da China e da Coréia do Sul corroboram essa ideia.

Mas porque a China, primeiro país a se haver com a doença, acabou determinando o isolamento social de milhões e milhões de pessoas? A explicação é dada pelos epidemiologistas: a taxa de contágio do COVID-19 é alta; não há vacina nem tratamento para a doença. Infectar toda a população mundial não é a melhor forma de agir. Então a solução proposta pelos epidemiologistas para desacelerar a expansão do COVID-19 foi a de "achatar a curva". Isso mesmo: em vez de deixar o virus invadir rapidamente a população e desaparecer rapidamente devido ao esgotamento dos suscetíveis, a proposta dos epidemiologistas é desacelerar a velocidade de contágio, impondo o isolamento social. É verdade que alguns governos como o britânico pensaram (e outros ainda pensam) em aguardar a “imunidade do rebanho”. Mas como é mostrado na Figura 2, haveria um colapso do sistema de saúde (como aconteceu na Itália) e até do sistema funerário (como está acontecendo no Equador).


 

Estima-se que cerca 10% ou mais dos casos de COVID-19 precisam de hospitalização. Cerca de 5% precisam de unidade de terapia intensiva (UTI). O número de novos casos é proporcional ao número de casos existentes e ao número de expostos a esses casos. Se a exposição for muito grande (em transportes coletivos, cinemas, shows, restaurantes), o número de infectados subirá muito acentuadamente (a curva vermelha). Então o número de pacientes que precisará de leitos nas unidades de terapia intensiva (UTI) pode exceder a capacidade dos hospitais locais. É o caos, o colapso do sistema de saúde. A curva azul mostra o crescimento da curva quando se adotam políticas de contenção, ou seja, isolamento social mais, ou menos, severo. É claro que isso traz consequências para a economia, mas é o que se pode fazer. A necessidade de isolamento social não é, infelizmente, intuitiva.

 

Mas o problema não será resolvido de maneira fácil: vírus costumam voltar depois que desaparecem. Em outras palavras, pode ocorrer uma nova onda da doença, ou seja, a curva epidemiológica pode começar se tornar senoidal. Não se sabe se isso acontecerá, mas daí a urgência de uma vacina e a lógica das restrições atualmente impostas pela China para a entrada dos que lá chegam: é o medo de uma segunda onda. A Figura 3 mostra uma simulação recente, feita por epidemiologistas, sobre a possível evolução, com a segunda onda, do COVID-19 para o restante de 2020. Que isso não aconteça!

      Figura 3 – Simulação de possível evolução de casos da

                                  COVID-19 em 2020

                                                                

COVID-19: estatísticas


O vírus SARS-CoV-2 surgiu no final de 2019 na China e depois se espalhou rapidamente em todo o mundo. Os cientistas estão se esforçando para encontrar antivirais e já existem propostas promissoras (1), mas o trabalho é muito demorado. No entanto, drogas conhecidas usadas no tratamento de outras infecções virais estão sendo testadas em estudos clínicos controlados e randomizados para verificar se elas também podem ser eficazes contra o vírus que causa a COVID-19. Mas o desenvolvimento de uma vacina, segura e eficaz, contra a doença provavelmente consumirá anos de pesquisa, mesmo que se quebrem protocolos.

A gravidade da doença pode variar de leve a crítica. O maior estudo coorte, feito na China com mais de 44.000 pessoas com COVID-19, mostrou que em 81% dos casos a doença é leve ou moderada, em 14% progride para severa e em 5% é crítica, podendo levar a óbito 2,3% deles (2). Nos EUA, 19% dos casos de COVID-19 precisaram hospitalização e 6% precisaram da unidade de terapia intensiva (UTI) (3). O tempo de internação de casos graves e críticos é longo. A mediana dos que sobreviveram quando tratados em unidades de terapia intensiva (UTI) ficou entre 12 e 14 dias (3).

O número básico de reprodução da infecção (número de pessoas que cada caso pode infectar) é 3, segundo uma estimativa muito em uso. A origem dessa informação pode ser a pesquisa, feita em janeiro deste ano por ingleses que usaram modelagem computacional de possíveis trajetórias epidêmicas, com dados reais da evolução da pandemia na China (4). Eles estimaram que cada caso de COVID-19 infecta, em média, 2,6 pessoas (intervalo de 95% de confiança: 1,5-3,5). Estudos mais recentes avaliam que esse número é bem mais alto (4), mas não se pode fugir à ideia de que qualquer estimativa para países com dinâmica de transmissão diversa e em plena pandemia é muito imprecisa.

 

De qualquer forma, tomando 3 como o número básico de reprodução de infecção do vírus SARS-CoV-2, que é apenas uma aproximação, o limiar de imunidade do rebanho é aproximadamente 67%. Isso significa que a probabilidade de incidência de infecção começará a diminuir assim que a proporção de indivíduos com imunidade adquirida à SARS-CoV-2 na população exceder 0,67 (5), ou seja, indivíduos suscetíveis estarão, então, mais protegidos.

 

Como o SARS-CoV-2 é um patógeno novo, muitas características de sua transmissão não são conhecidas. Mas viagens recentes de, ou para área com disseminação comunitária contínua, contato próximo com alguém que tenha COVID-19 (estar sem proteção a menos de 2 m de distância de quem está infectado e tossindo), cuidar de pessoa infectada e ser profissional de saúde parecem ser fatores de risco para doença. Risco de morte é maior para idosos e pacientes de qualquer idade com condições precárias de saúde, segundo dados atuais da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) (6). Homens também parecem ter maior risco de morte do que mulheres. E é razoável considerar que pobres têm maior risco de contágio e consequentemente de morte, pois vivem em moradias precárias e superlotadas, sem saneamento básico, praticamente sem atendimento de saúde, sem segurança alimentar e nutricional e, muitas vezes, sem a percepção do risco da doença.

O fato é que a COVID-19 é problema de saúde pública por causa da necessidade de internação dos casos graves e críticos, por praticamente meio mês cada um. Os sistemas hospitalares ficam sobrecarregados, alguns à beira do colapso. Mesmo em países ricos, faltam ou já faltaram leitos de UTI, testes, equipamentos médicos e equipamentos de proteção individual. O que acontecerá no Brasil quando não houver mais leitos nos hospitais nem atendimento médico para todos que precisam porque o sistema de saúde se esgotou? Em termos de ética, toda vida tem o mesmo valor. Então já se sabe de há muito que se deve “atender primeiro quem chegar primeiro”. Mas buscam-se alternativas: o certo seria atender primeiramente quem tem maior expectativa de vida (ou seja, o mais jovem) ou quem tem maior risco de morte (ou seja, o mais velho)? Tais escolhas comprometem a saúde mental dos profissionais da saúde e enchem de angústia os doentes e seus familiares, que aguardam atendimento na fila do Sistema Único de Saúde (SUS).

De qualquer modo, chamam a atenção nos noticiários tanto o número de novos casos como o número de óbitos. Esses números continuarão a crescer porque uma vacina não está no horizonte e o esgotamento dos suscetíveis só ocorrerá quando cerca de 70% da população tiver adquirido imunidade ao SARS-CoV-2. E o Brasil tem mais de 210 milhões de habitantes. Mas se o sistema de saúde operar em boas condições, mais vidas serão salvas, ou seja, diminuirão as mortes evitáveis (7). E para isso é preciso que a disseminação da doença seja mais lenta. Então o isolamento social (ou, até mesmo, o lockdown) é necessário para não exceder a capacidade de atendimento médico e do sistema funerário, apesar das consequências sociais, econômicas e educacionais serem profundamente negativas.

Restrições à circulação de pessoas não evitarão novos casos nem mortes devido à COVID-19, mas evitarão o colapso do sistema de saúde. Outras medidas importantes também devem ser tomadas, como expandir a capacidade das unidades de terapia intensiva (UTI), providenciar hospitais de campanha, identificar tratamentos que possam reduzir a demanda pela UTI, testagem em massa, rastreamento agressivo de infectados e vigilância a menos que surja um tratamento seguro e eficaz ou uma vacina esteja logo disponível (8). Mas, sobretudo, é preciso liderança inequívoca para a grave situação sanitária que o Brasil enfrenta. Ou será que a história se repetirá com “Après moi, le déluge”?

 

Referências

                      1.FOLHA DE SÃO PAULO. Remdesevir é hoje a droga mais promissora contra a COVID-19. 9 de maio de 2020.

 

                      2.Wu Z., McGoogan JM. Characteristics of and Important Lessons from the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Outbreak in China: Summary of a Report of 72314 Cases from the Chinese Center for Disease Control and Prevention. JAMA. 2020. Apud Interim Clinical Guidance for Management of Patients with Confirmed Coronavirus Disease (COVID-19). https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/hcp/clinical-guidance-management-patients.html

CDC COVID-19 Response Team.

 

                      3.      Severe Outcomes Among Patients with Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) — United States, February 12–March 16, 2020. MMWR Morbidity and mortality weekly report. 2020. https://www.cdc.gov/coronavirus/2019.

 

                      4.      Guan WJ, Ni ZY, Hu Y, et al. Clinical Characteristics of Coronavirus Disease 2019 in China. The New England journal of medicine. 2020. Apud Interim Clinical Guidance for Management of Patients with Confirmed Coronavirus Disease (COVID-19).

 

                      5.      Sanche S, Lin YT, Xu C, Romero-Severson E, Hengartner N, Ke R. High 338 contagiousness and rapid spread of severe acute respiratory syndrome coronavirus 2. 339 Emerg Infect Dis. 2020; 26: doi: 10.3201/eid2607.200282

 

                      6.      People Who Are at Higher Risk for Severe Illness.Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) CDC https://www.cdc.gov/coronavirus/2019

 

                      7.      N Imai, A Cori, I Dorigatti, M Baguelin, CA Donnelly, S Riley, NM Ferguson. Transmissibility of 2019-nCoV. Imperial College London; 25-01-2020. doi: https://doi.org/10.25561/77148.

 

                      8.      Herd immunity: Understanding COVID-19 2 Haley E Randolph1 and Luis B Barreiro1,2,3 3 4 5 6 1 Genetics, Genomics, and Systems Biology, University of Chicago, IL 7 2 Department of Medicine, Section of Genetic Medicine, University of Chicago, Chicago, IL 60637, 8 USA. 9 3 Committee on Immunology, University of Chicago, Chicago, IL 60637, USA.