Número é um objeto da matemática usado
para descrever quantidade, ordem ou medida. Mas eles não falam por si, precisam
ser analisados... Muitas vezes, a informação de interesse é uma
proporção, que dá a importância relativa de um fato ou um fenômeno.
Pense em uma empresa que fabrica determinada peça para motores de barcos.
No final de um dia de trabalho, 5 das peças produzidas tinham defeitos (ou, na
linguagem técnica, eram não conformes). Isso é muito? Depende da produção diária da empresa. Se a
empresa produz 100 peças por dia, a proporção de não conformes está muito alta:
5/100=0,05, ou seja, 5%. Mas se a empresa estiver produzindo 2500 peças por
dia, 5/2500=0,002, ou seja, 0,2% são não conformes. Bem melhor.
Não tem sentido calcular porcentagens quando os
totais são muito pequenos. Afinal, é bem conhecida a história do pesquisador
que considerou uma droga bastante promissora porque 33% dos ratos tratados com essa
nova droga ficaram curados de determinada doença. Mas quando instado a dar o
tamanho da amostra, contou que tinha três ratos: “um sarou, outro continuou
doente e o terceiro rato fugiu..." Amostras demasiado pequenas produzem
fake news.
No
entanto, não é preciso que sua amostra passe muito dos 100 (cem), para se
calcular uma porcentagem. Afinal, grandes números só na China. Lá, alguém que se sentisse único em um milhão, teria milhares
de pessoas que lhe seriam iguais, pois o país tem 1,402 bilhão de habitantes. Mas
o Brasil também é um país de dimensões continentais. Por aqui, também temos
grandes números. Em 2020, a estimativa do IBGE para a população do Brasil era
de 212, 6 milhões de habitantes.
Mas é preciso comparar números e proporções com muito critério para emitir
opiniões e julgamentos. Como explica o humorista Jô Soares, um fio de cabelo é
pouco na cabeça, mas muito na sopa...
Vamos ver algumas estatísticas do Brasil, para lembrar que pouca ciência
e muita ideologia conduzem à fake news. Importante é lembrar sempre que a
“gente brasileira” é extremamente variada. E essa desigualdade produz estatísticas estarrecedoras: por exemplo,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, os negros compõem
52% da população brasileira, mas são as vítimas em 75% dos casos de morte em
ações policiais. Ainda, historicamente, a população prisional do país, composta
principalmente por homens, jovens, negros, com baixa escolaridade, segue um perfil muito semelhante ao das vítimas de homicídios 1. A chance de pessoas negras serem mortas por
armas de fogo no Brasil é 3 vezes maior do que a de uma pessoa não negra 2.
Um funcionário da área jurídica me explicou que isso
acontece porque os negros são mais violentos. Mas, segundo a Organização das
Nações Unidas – ONU, o crime e a violência afetam a vida de milhões de pessoas na América Latina 3. Um dos
principais fatores que podem explicar os altos níveis de violência, segundo a
ONU, é a desigualdade social. E pretos e pardos carregam
muito mais esses fardo porque correspondem a 64% dos desempregados e 66% dos subutilizados 4.
Toda interpretação carrega uma carga de ideologia. Mas importante é não dizer uma estatística,
sem antes considerar o que essa estatística não é capaz de dizer. Porque dados
do sistema de notificação do Ministério da Saúde também mostram que crianças e
adolescentes negros morrem 3,6 mais em razão da violência armada do que as não negras 5. Os números escancaram como a vida da população negra é diretamente
atingida pelo racismo.
Outra coisa interessante sobre as proporções é o fato de elas permitirem
estabelecer relações entre grandezas. Nesses casos, as proporções são
multiplicadas por 100, para dar o resultado em porcentagem. E muito importante
é não confundir crescimento em “pontos percentuais” com “porcentagem
de crescimento”. A diferença
entre 3% e 2% é de 1 ponto percentual. No entanto, quando se passa de 2% para
3%, a porcentagem de crescimento de 50%.
A variação percentual expressa – não a diferença entre porcentagens – mas a
medida com que uma variável ganha ou perde intensidade, magnitude, extensão ou
valor entre dois períodos distintos, em relação a um desses períodos.
Considere este exemplo. O Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) 6 alertou
que, no mês de junho de 2019, o desmatamento na Amazônia Legal foi de 920,4
km². No mesmo período do ano anterior, isto é, em junho de 2018 o alerta de desmatamento
na Amazônia Legal havia sido de 489,6 km².
A diferença entre esses dois períodos foi de
A
variação percentual foi de
É claro que um aumento percentual de 88% de alerta para o desmatamento em relação ao mesmo período do anterior é alto, mas não significa, obviamente, 88% de desmatamento dos 5.217.423 km² da Amazônia Legal.
No
entanto, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, informado sobre o aumento do
alerta para o desmatamento da Amazônia de junho de 2019 em relação ao mesmo mês
no ano anterior, explodiu: “os dados são mentirosos” 7.
O Senhor Presidente deve ter entendido que havia sido derrubada 88% da
Amazônia Legal. Acusou o então Diretor do INPE, Ricardo Galvão, de publicar
dados falsos (seriam estatísticas promovendo fake news!). O fato é que depois
de falas e contra falas, Ricardo Galvão foi exonerado, conforme conta no Diário
Oficial da União de 7 de agosto de 2019 8.
Mas as estatísticas estavam corretas, considerada a margem conhecida de erros
na coleta de dados. Apesar do alerta do INPE – e por conta disso a impensável
exoneração do seu Diretor - o desmatamento continuou firme e forte.
Entre
agosto de 2020 e julho de 2021, meses em que se mede a temporada do
desmatamento, a Amazônia
Legal perdeu 10.476 km² de floresta que
foi, em números absolutos, a maior dos
últimos dez anos. A taxa é 57% maior que a da temporada anterior, aponta
o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon)9.
Então certa conversa de que floresta úmida não pega fogo só serviu para gerar
fake news...
Mas
fake news também foram produzidas pelo Ministério da Saúde, relativos à
pandemia de COVID-19, porque não apontou a gravidade da pandemia. Afinal, o
total de registro de mortes no Brasil em 2020, primeiro ano da pandemia, cresceu
14,9% em relação a 2019. O consórcio de veículos de imprensa contabilizou
194.976 óbitos por COVID-19, de março a dezembro de 2020, pelo menos 13% do 1,5
milhão de pessoas que perderam a vida nesse ano 10.
A
verdade da ciência acaba prevalecendo, apesar dos percalços e mesmo que demore
séculos. Quem acreditou de pronto que a Terra gira, como discursava
Galileu? Mas em um contexto menor: se
você precisa estar, como eu, alerta para as porcentagens quando compra a prazo
ou enfrenta o gerente do banco, estude porcentagens, que são básicas em
Matemática financeira.
Referências
1. Dia da Consciência Negra: Por que os
negros são maioria no sistema prisional? Disponível em
http://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418. Acesso em 3 de novembro de
2021.
2. Gravas, D. Fome e desemprego no
Brasil têm cor, apontam pesquisas. Folha de São Paulo, 20de novembro de 2021.
3. Crime and violence in
Latin America. Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Crime_and_violence_in_Latin_America. Acesso em 23
de novembro de 2021
4. Gravas, D. Fome e desemprego no
Brasil têm cor, apontam pesquisas. Folha de São Paulo, 20 de novembro de 2021
5. Mena, F.;
Camazano, P. Crianças negras morrem 3,6 vezes mais por arma de fogo. Folha de
São Paulo.20 de novembro de 2021
6. Moreno, A. C. Desmatamento na Amazônia em junho é
88% maior do que no mesmo período de 2018. Disponível
em https://g1.globo.com › natureza › noticia › 2019/07/03 Acesso em
10 de julho de 2019.
7. Diretor do INPE será exonerado após
questionamento de dados sobre desmatamento. Disponível
em https://oglobo.globo.com. Acesso em 10 de julho de 2019.
8. Exoneração de diretor do Inpe é publicada no
'Diário Oficial'. Disponível em https://g1.globo.com2019/08/07. Acesso em
10 de julho de 2019
9. Modelli, L.Desmatamento na Amazônia na temporada 2020/2021 é o maior
dos últimos dez anos. Disponível
emhttps://g1.globo.com/natureza/amazonia/noticia/2021/08/19/taxa-anual-de-desmatamento-na-amazonia-e-a-maior-do-ultimos-dez-anos-diz-imazon.ghtml. Acesso
em 20 de novembro de 2021.
10 Coronavírus:
por que países liderados por mulheres se destacam no combate à pandemia?
Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52376867.
Acesso em 30 de outubro de 2021.
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