Sunday, March 13, 2022

Porcentagens: que difícil!

Número é um objeto da matemática usado para descrever quantidade, ordem ou medida. Mas eles não falam por si, precisam ser analisados... Muitas vezes, a informação de interesse é uma proporção, que dá a importância relativa de um fato ou um fenômeno.

Pense em uma empresa que fabrica determinada peça para motores de barcos. No final de um dia de trabalho, 5 das peças produzidas tinham defeitos (ou, na linguagem técnica, eram não conformes). Isso é muito? Depende da produção diária da empresa. Se a empresa produz 100 peças por dia, a proporção de não conformes está muito alta: 5/100=0,05, ou seja, 5%. Mas se a empresa estiver produzindo 2500 peças por dia, 5/2500=0,002, ou seja, 0,2% são não conformes. Bem melhor.

Não tem sentido calcular porcentagens quando os totais são muito pequenos. Afinal, é bem conhecida a história do pesquisador que considerou uma droga bastante promissora porque 33% dos ratos tratados com essa nova droga ficaram curados de determinada doença. Mas quando instado a dar o tamanho da amostra, contou que tinha três ratos: “um sarou, outro continuou doente e o terceiro rato fugiu..." Amostras demasiado pequenas produzem fake news.

No entanto, não é preciso que sua amostra passe muito dos 100 (cem), para se calcular uma porcentagem. Afinal, grandes números só na China. Lá, alguém que se sentisse único em um milhão, teria milhares de pessoas que lhe seriam iguais, pois o país tem 1,402 bilhão de habitantes. Mas o Brasil também é um país de dimensões continentais. Por aqui, também temos grandes números. Em 2020, a estimativa do IBGE para a população do Brasil era de 212, 6 milhões de habitantes.

Mas é preciso comparar números e proporções com muito critério para emitir opiniões e julgamentos. Como explica o humorista Jô Soares, um fio de cabelo é pouco na cabeça, mas muito na sopa...

Vamos ver algumas estatísticas do Brasil, para lembrar que pouca ciência e muita ideologia conduzem à fake news. Importante é lembrar sempre que a “gente brasileira” é extremamente variada. E essa desigualdade produz estatísticas estarrecedoras: por exemplo, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, os negros compõem 52% da população brasileira, mas são as vítimas em 75% dos casos de morte em ações policiais. Ainda, historicamente, a população prisional do país, composta principalmente por homens, jovens, negros, com baixa escolaridade, segue um perfil muito semelhante ao das vítimas de homicídios 1. A chance de pessoas negras serem mortas por armas de fogo no Brasil é 3 vezes maior do que a de uma pessoa não negra 2.

Um funcionário da área jurídica me explicou que isso acontece porque os negros são mais violentos. Mas, segundo a Organização das Nações Unidas – ONU, o crime e a violência afetam a vida de milhões de pessoas na América Latina 3. Um dos principais fatores que podem explicar os altos níveis de violência, segundo a ONU, é a desigualdade social. E pretos e pardos carregam muito mais esses fardo porque correspondem a 64% dos desempregados e 66% dos subutilizados 4.

Toda interpretação carrega uma carga de ideologia.  Mas importante é não dizer uma estatística, sem antes considerar o que essa estatística não é capaz de dizer. Porque dados do sistema de notificação do Ministério da Saúde também mostram que crianças e adolescentes negros morrem 3,6 mais em razão da violência armada do que as não negras 5. Os números escancaram como a vida da população negra é diretamente atingida pelo racismo.

Outra coisa interessante sobre as proporções é o fato de elas permitirem estabelecer relações entre grandezas. Nesses casos, as proporções são multiplicadas por 100, para dar o resultado em porcentagem. E muito importante é não confundir crescimento em “pontos percentuais” com “porcentagem de crescimento. A diferença entre 3% e 2% é de 1 ponto percentual. No entanto, quando se passa de 2% para 3%, a porcentagem de crescimento de 50%.

            A variação percentual expressa – não a diferença entre porcentagens – mas a medida com que uma variável ganha ou perde intensidade, magnitude, extensão ou valor entre dois períodos distintos, em relação a um desses períodos.  

            Considere este exemplo. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) 6 alertou que, no mês de junho de 2019, o desmatamento na Amazônia Legal foi de 920,4 km². No mesmo período do ano anterior, isto é, em junho de 2018 o alerta de desmatamento na Amazônia Legal havia sido de 489,6 km².  A diferença entre esses dois períodos foi de

A variação percentual foi de

            É claro que um aumento percentual de 88% de alerta para o desmatamento em relação ao mesmo período do anterior é alto, mas não significa, obviamente, 88% de desmatamento dos 5.217.423 km² da Amazônia Legal.

            No entanto, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, informado sobre o aumento do alerta para o desmatamento da Amazônia de junho de 2019 em relação ao mesmo mês no ano anterior, explodiu: “os dados são mentirosos” 7. O Senhor Presidente deve ter entendido que havia sido derrubada 88% da Amazônia Legal. Acusou o então Diretor do INPE, Ricardo Galvão, de publicar dados falsos (seriam estatísticas promovendo fake news!). O fato é que depois de falas e contra falas, Ricardo Galvão foi exonerado, conforme conta no Diário Oficial da União de 7 de agosto de 2019 8. Mas as estatísticas estavam corretas, considerada a margem conhecida de erros na coleta de dados. Apesar do alerta do INPE – e por conta disso a impensável exoneração do seu Diretor - o desmatamento continuou firme e forte.

Entre agosto de 2020 e julho de 2021, meses em que se mede a temporada do desmatamento, a Amazônia Legal perdeu 10.476 km² de floresta que foi, em números absolutos, a maior dos últimos dez anos. A taxa é 57% maior que a da temporada anterior, aponta o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon)9. Então certa conversa de que floresta úmida não pega fogo só serviu para gerar fake news...

Mas fake news também foram produzidas pelo Ministério da Saúde, relativos à pandemia de COVID-19, porque não apontou a gravidade da pandemia. Afinal, o total de registro de mortes no Brasil em 2020, primeiro ano da pandemia, cresceu 14,9% em relação a 2019. O consórcio de veículos de imprensa contabilizou 194.976 óbitos por COVID-19, de março a dezembro de 2020, pelo menos 13% do 1,5 milhão de pessoas que perderam a vida nesse ano 10.

            A verdade da ciência acaba prevalecendo, apesar dos percalços e mesmo que demore séculos. Quem acreditou de pronto que a Terra gira, como discursava Galileu?  Mas em um contexto menor: se você precisa estar, como eu, alerta para as porcentagens quando compra a prazo ou enfrenta o gerente do banco, estude porcentagens, que são básicas em Matemática financeira.

Referências

1.  Dia da Consciência Negra: Por que os negros são maioria no sistema prisional? Disponível em http://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418. Acesso em 3 de novembro de 2021.

2.  Gravas, D. Fome e desemprego no Brasil têm cor, apontam pesquisas. Folha de São Paulo, 20de novembro de 2021.

3.  Crime and violence in Latin America. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Crime_and_violence_in_Latin_America. Acesso em 23 de novembro de 2021

4.  Gravas, D. Fome e desemprego no Brasil têm cor, apontam pesquisas. Folha de São Paulo, 20 de novembro de 2021

5.    Mena, F.; Camazano, P. Crianças negras morrem 3,6 vezes mais por arma de fogo. Folha de São Paulo.20 de novembro de 2021

6.  Moreno, A. C. Desmatamento na Amazônia em junho é 88% maior do que no mesmo período de 2018. Disponível em https://g1.globo.com › natureza › noticia › 2019/07/03 Acesso em 10 de julho de 2019.

7.  Diretor do INPE será exonerado após questionamento de dados sobre desmatamento. Disponível em https://oglobo.globo.com. Acesso em 10 de julho de 2019. 

8. Exoneração de diretor do Inpe é publicada no 'Diário Oficial'. Disponível em https://g1.globo.com2019/08/07. Acesso em 10 de julho de 2019

9. Modelli, L.Desmatamento na Amazônia na temporada 2020/2021 é o maior dos últimos dez anos. Disponível emhttps://g1.globo.com/natureza/amazonia/noticia/2021/08/19/taxa-anual-de-desmatamento-na-amazonia-e-a-maior-do-ultimos-dez-anos-diz-imazon.ghtml. Acesso em 20 de novembro de 2021.

10 Coronavírus: por que países liderados por mulheres se destacam no combate à pandemia? Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52376867. Acesso  em 30 de outubro de 2021.


                                                                                                                                                     

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