Cuidado com as estatísticas do tipo "90% das
pessoas ficaram completamente curadas do resfriado, após tomarem o
maravilhoso...". Essas pessoas ficariam curadas, com ou sem medicamento.
Como já disse um humorista "Quando convenientemente tratados, os
resfriados saram em uma semana. Deixados sem tratamento, podem perdurar toda a
semana". Esquecidos dessa verdade simples, compramos comprimidos, cápsulas,
pastilhas, drágeas e o que mais houver para prevenir e curar nossos resfriados.
E também embarcamos em ofertas de pílulas para emagrecer, comprimidos para
melhorar o desempenho sexual, pomadas para retardar (ou até impedir!) o
envelhecimento e por aí vai.
Muitos dos produtos que vemos todos os dias nos
supermercados pecam pelo exagero ao exaltar suas qualidades. Você já foi convencido,
pela mera propaganda, de que certos produtos têm “mais aroma”, ou “mais sabor”
ou “duram mais”? Perguntou-se: comparados com o quê? Por exemplo: você olha na
prateleira do supermercado e lê na embalagem de determinado produto: “Baratas?
Use X-plus, mata três vezes
mais". Então você compra o tal do X-plus
– certo de que vai acabar com as baratas –, e verifica que elas continuam lá!
Será que as suas baratas são mais resistentes do que as baratas dos outros? Será
que você não seguiu as recomendações do fabricante? Bem, tudo isso pode ser
verdade, mas a resposta pode estar na frase: "Use X-plus, mata três vezes mais”. O que significa "matar três
vezes mais"? Absolutamente nada. A frase não tem sentido. Não estabelece
comparação.
As comparações – que não comparam – são comuns em
propaganda. No caso de cosméticos, por exemplo, há exageros evidentes. "Eu
era assim", "fiquei assim", "depois de usar o maravilhoso
xampu X", diz a propaganda. A diferença entre "antes" e
"depois" é tão notória que os consumidores se entusiasmam. Mas
observe a propaganda com cuidado e se pergunte: quanto da diferença entre
"antes" e "depois" se deve creditar ao cabeleireiro, ao maquiador,
ao costureiro, ao iluminador, ao fotógrafo e – conceda-se – ao xampu?
Mostrar uma moça bonita recomendando produtos como vestuário,
cosméticos e alimentos não prova absolutamente nada. Não é o produto que a moça
recomenda que a fez bonita. Ao contrário, ela foi convidada para fazer o comercial
porque é bonita...
A propaganda comercial usa mensagens exageradas para produzir resposta emocional - e não racional – à informação apresentada. Em tais contextos, a propaganda deveria ser chamada de publicidade. Mas não se pode demonizar a propaganda. Em seu sentido original, o termo é neutro e pode, até mesmo, ter uso positivo. É o caso das recomendações feitas pelos governadores para a população se vacinar, as mensagens do governo pedindo às pessoas que respondam aos censos, as mensagens de entidades filantrópicas pedindo colaboração.
Mas a informação fake não fica por aqui. Também se
pode mostrar o que se viu para "provar estatisticamente" o que não se
viu. Por exemplo, se você quiser provar que determinado produto diminui a
incidência de cáries, vai trabalhar por muito tempo – seguramente mais de
quatro anos. Primeiramente, é preciso testar o produto em laboratório e
verificar se o produto tem efeito bactericida. Depois, é preciso fazer um
experimento com ratos. Se der certo em ratos – evitar as cáries e não causar
efeitos colaterais sérios – poderá ser testado em algumas pessoas. Essas
primeiras pessoas em quem o produto será testado darão informações sobre cheiro,
gosto e seus efeitos colaterais indesejáveis perceptíveis, como dor de
estômago, náusea etc.
Se o produto for aprovado nesse teste, faz-se outro
experimento. Um grupo de crianças – digamos 3.000 – é dividido ao acaso em dois
subgrupos. Um subgrupo recebe o produto em teste e o outro – que os
estatísticos denominam grupo controle – não recebe o produto. Depois de um ano
e meio ou dois, compara-se a incidência de cáries nos dois grupos. À primeira
vista, o experimento parece simples, mas não é bem assim. Quem garante que as
crianças vão usar o produto por dois anos, conforme as indicações? Depois,
quantas crianças vão mudar de endereço ou apenas desistir de cooperar? Quem vai
pagar os gastos? Quem vai observar as crianças periodicamente?
É difícil fazer um experimento científico sério.
Mas, se você tiver pressa, pode "provar estatisticamente" mesmo sem
provas! Basta ficar na primeira parte do teste. Se você conseguir verificar -
em tubos de ensaio! – que o produto tem efeito bactericida, ótimo. Depois, é só
trabalhar para ter um produto com gosto minimamente razoável. Informe apenas
que o produto "mata os germens da boca e assim diminui 80% das cáries".
Nada de muito detalhe, que compromete! A investigação poderá vir depois... ou nunca 1.
E eu já recebi um longo artigo em inglês que
relatava uma metanálise de ensaios randomizados provando que a ivermectina previne
COVID-192. O que primeiro chamou
minha atenção foi o fato de o artigo não apresentar autor ou autores, suas
credenciais e filiações a instituições de pesquisa. Lendo o artigo, percebi que
tinha ali a mão de alguém com treino em pesquisa. Citava vários ensaios randomizados
publicados – a maioria de revistas inacessíveis – mas que não tinham a
similaridade que uma metanálise exige. Os gráficos eram vistosos e coloridos,
mas totalmente inadequados. Os livros citados de estatística – todos excelentes
– não tratam metanálise. Enfim, um artigo “pour épater le bourgeois”, ou em bom
português – pura enganação. O fato é que a COVID-19 foi pródiga na produção de arremedos
de estatística, ou seja, fake news 3.
Cloroquina e hidroxicloroquina
foram prescritas com base no fato de essas drogas inibirem o SARS-CoV-2 in
vitro, ou seja, em tubos de ensaio. No
entanto, elas se revelaram inadequadas em ensaios clínicos. O fato de a cloroquina ser droga antiga e
ainda ser indicada para outras doenças não significa que seja inócua. Nenhuma
droga é totalmente segura e o amplo uso de hidroxicloroquina pode expor alguns
pacientes a danos raros, mas possíveis. A sobredosagem é perigosa e difícil de tratar 4.
Enfim,
não aceite "provas" que não provam. Use a regra que, em qualidade, os
estatísticos chamam de 4W-2H, as iniciais em letras maiúsculas das palavras em língua
inglesa: who, where, when, what, how e how
many. Quando informam você de que A é melhor, pergunte a si mesmo: quem (who) disse isso é da área? Onde (where) foram coletados os dados? Quando
(when) isso foi publicado? O que (what) foi provado? Como (how) foi provado? Quantos (how many) dados foram coletados e estão
disponíveis?
Outra forma de garimpar estatísticas para produzir
fake news consiste em fazer uma pergunta que induza à resposta e, depois, usar
a "quantidade de respostas" como prova. Por exemplo, o que acontece
se você perguntar a um grupo de alunos do curso médio quais são os problemas
deles com a escola? Alguns levantarão problemas reais como o bullying ou a falta de equipamentos na
escola, outros lembrarão apenas de problemas de natureza pessoal como a
distância entre a escola e a casa deles. Mas certos alunos dirão apenas que
escola “é uma chatice”, “é melhor sair por aí do que ir à escola” sem apontar
problemas. Feitas as estatísticas, você pode chegar à conclusão de que a
porcentagem de alunos que manifestou algum tipo de restrição à escola - não
importa de que tipo - é alta. Isso, porém, não é suficiente para estampar no
jornal: "70% (ou o que der) dos alunos têm problemas na escola",
porque isso seria fake news.
E não
se esqueça de que as pessoas se acostumaram ao achismo. É tão fácil dar
palpites sobre o que nunca se estudou e, com base apenas “no caso do meu
vizinho” deitar conhecimento sobre medicina, direito, psicologia, economia
etc.. A certeza absoluta é própria dos fanáticos. Mas é difícil admitir que a
incerteza faz parte de nossas vidas.
Referências
1. Vieira, S. Research on chewing gum. Open Journal of Philosophy 7 (3):260-264. 2017.
2. Schraer, R.; Goodman,
J. Ivermectina: como falsa ciência criou crença de remédio milagroso
contra COVID. Disponível em https://g1.globo.com 2021/10/07. Acesso em 12 de novembro de 2021.
3. Produtor
de ivermectina diz que não fez estudos sobre a COVID, mas mesmo assim pagou anúncios. Disponível em https://g1.globo.com › cpi-da-covid › noticia
› 2021/08/11. Acesso em 12 de
novembro de 2021.
4. Ferner, RE,
Aronson, JK .Chloroquine and hydroxychloroquinein Covid-19.Use of this drugs is
premature and potentially harmfull. BMJ. London. 8 APR. 2020; 369: m1432.
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