Monday, February 08, 2021

O experimento do funil de Deming

 

Quando se pensa em Controle da Qualidade, depara-se com a questão de o que fazer quando ocorrem itens não conformes. Uma ideia comum é a de agir de imediato e “resolver” o problema. Mas o resultado desse esforço será um aumento da variabilidade do processo. Quando são produzidos muitos itens não conformes, é preciso corrigir o sistema – não basta “mexer” aqui e ali. Utilizar um feedback eletrônico para manter um característico de qualidade dentro das especificações causa, pelo excesso de ajustes, perdas nos estágios subsequentes.

 

 Para o estatístico que trabalha em Controle da Qualidade, é importante entender a razão teórica desta afirmativa. Deming1 dá, então, um exemplo concreto sob o título “Experiências Monte Carlo com um funil”. O propósito dessa experiência, que o autor recomenda fazer com um funil e uma bolinha de gude, é demonstrar que ajustar um processo excessivamente conduz à perda – e não ao ganho, como muitas vezes se supõe.

 

Deming propõe a experiência – mas não demonstra a base estatística. Uma referência teórica é dada de forma muito ampla e complexa em outro texto do mesmo autor 2. O presente trabalho propõe a explicação, com base na Estatística, das “Experiências Monte Carlo com um funil” de Deming, que é uma demonstração prática da razão de não se corrigir um processo por conta de uma falha.

 

2. A experiência

 

Os materiais necessários para fazer a experiência são funil, bola de gude que passe pelo funil, mesa e um suporte para o funil. O procedimento é simples: primeiramente, coloca-se o funil fixado no suporte sobre a mesa. Marca-se, então, um ponto sobre a mesa, que será o alvo. Depois, deixa-se a bola de gude cair através do funil em direção ao alvo assinalado e se marca o ponto em que a bola de gude realmente parou. Repete-se esse procedimento n vezes. Deming sugere n = 50. Veja a figura 1.


                           Figura 1: Queda da bole de gude pelo funil.

Antes de iniciar o processo – ou seja, antes de começar a lançar a bola de gude pelo funil – é preciso decidir que atitude tomar na k-ésima queda (k =1, 2,...n) se a bola cair à distância dk do alvo. As atitudes possíveis – chamadas aqui de regras – são as seguintes:

Regra 1: manter o funil apontado para o alvo fixado de início, em todos os lançamentos.

Regra 2: toda vez que a bola de gude cair fora do alvo, deslocar o funil de maneira que fique apontado para o ponto em que a bola caiu.

Regra 3: toda vez que a bola de gude cair fora do alvo, deslocar o funil de maneira que fique apontado para uma distância di do ponto em que a bola cai ou a partir do alvo, na mesma direção, mas em sentido contrário, tentando corrigir o erro.

 

3. A lógica das regras

 

A primeira regra é, de longe, a melhor escolha porque conduz à menor variância. Mesmo que um processo esteja sob controle estatístico, é inevitável haver certa proporção de perdas. Isto deve ser entendido e assumido.

 

A segunda regra é tola. Acertar a posição do funil toda vez que a bola de gude não parar no alvo é excessivo. Os calibradores devem respeitar a precisão dos aparelhos e ter uma regra para saber quando eles devem ser ajustados. O exemplo prático do uso desta regra seria de um fabricante de tintas que, toda vez que a cor de um lote fugisse ao padrão, buscasse acertar a cor do lote seguinte de acordo com a cor do último lote produzido. A variabilidade das cores aumentaria ao longo do tempo.

 

A terceira regra é ainda mais tola. Como o alvo é fixo, o atirador deve mirar sempre a mosca – e não procurar atirar em um ponto para “compensar” o último erro. O exemplo prático seria de um ensacador de café que tentasse acertar o peso da saca calibrando e compensando o erro pelo peso da anterior (se a saca que deveria ter 60 kg, pesar 61 kg, o técnico ajustaria a balança para o peso de 59 kg). A variabilidade aumenta rapidamente, ou seja, o sistema “explode”. 

 

4. A comprovação estatística

 

O alvo será a origem do sistema cartesiano, isto é, o ponto O, de coordenadas (0,0). Na k- ésima (k =1, 2,...n) queda, a bola de gude cai no ponto Pk, à distância dk do alvo. Veja o sistema de eixos cartesianos da Figura 2, com o ponto de origem O (alvo) e o ponto Pk (lugar onde a bola cai). Tem-se que:

Pelo teorema de Pitágoras:


                                  

Figura 2: Queda da bole de gude pelo funil.

 

  

1.    Estudo da variabilidade do processo usando a regra 1.

 

No k -ésimo lançamento, a bola de gude chegará a um ponto Pk de abscissa:


em que x0 = 0, porque é a ordenada da origem e ei  (i = 1, 2,..., k,..., n) são erros aleatórios, ou seja, variáveis aleatórias independentes identicamente distribuídas de média zero e variância s2.

 

     As abscissas do ponto Pk terão, portanto, média dada por:

 

 e variância:



Analogamente, no k-ésimo lançamento a bola de gude chegará a um ponto Pk de ordenada:


em que y0 = 0 porque é a ordenada da origem e ui  (i = 1, 2,...k...., n) são erros aleatórios, ou seja, variáveis aleatórias independentes identicamente distribuídas de média zero e variância s2. Logo: 


Lembrando (1), pode-se escrever:


                                                        

Portanto, se nos n lançamentos o funil for apontado para o alvo fixado de início, as coordenadas dos pontos em que a bola de gude cai terão média zero e variância s2. A distância dos n pontos em relação ao alvo terão variância 2s2.

 

1.    Estudo da variabilidade do processo usando a regra 2.

 

Se, toda vez que a bola de gude cair fora do alvo, o funil for apontado para o ponto em que a bola caiu, tem-se que:



Portanto, se nos n lançamentos, toda vez que a bola de gude cair fora do alvo, o funil for deslocado de maneira a ficar apontado para o ponto em que a bola caiu numa tentativa de corrigir o erro, as coordenadas dos pontos em que a bola de gude cai terão média zero e variância n2. A distância dos n pontos em relação ao alvo terão variância 2n2, ou seja, a variância aumenta em função do número de jogadas.

 

1.    Variabilidade do processo usando a regra 3.

 

Na (k-1)-ésima jogada, a bola de gude cai no ponto Pk-1. Se o operador optar pela regra 3, apontará o funil para o ponto Pk  de ordenadas qxk-1, qyk-1 ,em que k ≠ 0 e k ≠ 1. Nestas condições:





A equação (4) mostra que, deslocando o funil de tal maneira que fique apontado para uma distância q do ponto em que caiu a bola de gude em seu último lançamento, o processo rapidamente “explode”. O ponto atingido pela bola de gude fica, a cada lançamento, mais afastado do alvo.

 

5. Conclusão

 

Um processo sob controle estatístico pode estar produzindo muitos itens não conformes. Então a meta é diminuir a variabilidade e não somente manter o processo sob o controle estatístico. Curiosamente, não se consegue diminuir a variabilidade com ajustes excessivos. Se a variabilidade for alta, é preciso corrigir todo o sistema.

 

6. Referências

 

DEMING, W. E. Some theory of sampling. New York, Dover, 1996.

DEMING, W. E. Qualidade: a revolução da administração. São Paulo: Saraiva. 1960.








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