Encontrei na internet este artigo1, que traz junto o comentário:
There's no such thing
as a stupid question... we're not so sure.
A única referência é John Harrington. E o artigo
traz umas “preciosidades”: “Sabemos a velocidade da luz.
Qual é a velocidade do escuro?” Pois é, caro professor, como se responde a uma
questão dessas? E esta outra: “o mundo é redondo como uma bola ou redondo como
um prato?” Esta questão – cá entre nós –, até poderia parecer pertinente para
alguns, uma vez que já se levantou por aqui a teoria do terraplanismo. Mas
minha experiência, como professora de
pós-graduação, foi a de aprender muitas coisas com os alunos – e não só sobre a
disciplina que eu ministrava. Aliás, os professores em geral admitem que
aprendem com seus alunos e até consigo mesmos, quando administram aulas, pois
se veem obrigados a estudar mais e a pensar melhor.
Feliz aquele que
transfere o que sabe e aprende o que ensina2.
Só que algumas vezes já me deixaram sem resposta.
Por exemplo, depois de me aposentar na Unicamp, dei aulas em um curso noturno,
às sextas feiras e aos sábados, para alunos de pós-graduação com diferentes
formações, perfis variados, que trabalhavam para viver. Minha disciplina tinha
o nome pomposo de Metodologia Científica, mas se propunha a ensinar algumas
regras práticas para escrever uma tese. Usei, como texto, um livro elementar,
que considerei adequado para o propósito do curso (3). Eu tentava dar
alguma ideia de ciência, mas como? Pois um aluno com formação em Filosofia me
perguntou porque eu não adotava como texto o livro de René Descartes (4) “O
Discurso sobre o Método”, um tratado filosófico e matemático publicado na
França em 1637. Sem qualquer intenção de
desmerecer a importância da obra do filósofo francês (Cogito, ergo sum),
ainda dou tratos à bola: o que eu deveria responder a esse aluno?
Em outra ocasião e em outro curso, expliquei que,
para levantar dados pessoalmente por meio de um questionário (5), não se deve
intervir na resposta do participante da pesquisa, mas apenas anotar suas
respostas, sem qualquer tipo de comentário. Se for o caso, o pesquisador pode
colocar sua posição profissional para o respondente, mas só depois de gravar
(ou anotar) todas as respostas. Claro que perguntar aos alunos que ingressam na
faculdade porque escolheram determinado curso não trará respostas inusitadas.
Mas elas fatalmente aparecerão se você fizer levantamentos no Brasil profundo.
Então perguntei a alunos de Odontologia: “Que você diria, se ao perguntar a uma
pessoa se escova os dentes diariamente, receber, como resposta: Não preciso,
masco fumo”? Fui espinafrada por um aluno grã-fino. Pois é, talvez ele
não tenha entendido a minha argumentação, de que a resposta do respondente
tem de ser anotada, não importa quão absurda ela seja (ou talvez esse aluno
tenha acordado exatamente quando eu dizia "não escovo os dentes, masco
fumo). Mesmo assim, ele me fez perder o rebolado.
Aliás, explicar como se faz um questionário é
sempre um problema. As pessoas acham que sabem tudo sobre o assunto. E foi
discorrendo sobre as idas e vindas necessárias para construir um questionário
que fui surpreendida pela pergunta – até certo ponto atrevida, embora
equivocada – de um pós-graduando: Por que estamos discutindo “isso”? Em
Medicina, todos os questionários já estão prontos! O que eu deveria responder?
Se já está tudo pronto, de que interessa uma dissertação de mestrado, mesmo
sendo a sua?
Foi também discorrendo sobre a dificuldade de
levantar dados (sobre opiniões, ideias, sonhos, sentimentos dos
entrevistados) que apontei duas formas de organizar as opções de resposta: a
pesquisa quantitativa, que fornece ao respondente respostas prontas, com
quadradinhos para ticar e a pesquisa qualitativa, que dá ao entrevistado a possibilidade de responder com suas
próprias palavras. Para deixar claro, fiz um levantamento de dados com os
próprios alunos. Perguntei por escrito: “se você for ao dentista e ele lhe
disser que precisa extrair um dente, qual seria seu primeiro sentimento? ” E os
alunos responderam tristeza, desânimo, medo, mal-estar, descrença no
profissional etc. Mas um deles foi taxativo: “ninguém arranca nenhum
dente meu”. Minha ideia era buscar diferentes respostas diante de uma situação
de perda pessoal – e achei. Mas o que comentar sobre a resposta desse aluno?
...se alguém me
desafia e bota a mãe no meio, dou
pernada a três por quatro e nem me despenteio (6).
A análise de dados também é difícil de discutir. Em
uma pós-graduação de Medicina apresentei, como forma de pesquisa observacional,
o British
Doctors Study, um marco nesse campo, pois é visto como a primeira prova
estatística forte da correlação entre o hábito de fumar e muitas doenças
graves, inclusive o câncer de pulmão (7). Para fazer esse estudo (8), que data
dos anos de 1950, dois pesquisadores ingleses enviaram questionários para todos
os médicos do Reino Unido, com perguntas que visavam levantar os hábitos de
fumar dos médicos, além de dados pessoais (sexo, idade, etc.). Foram enviados
cerca de sessenta mil questionários e analisadas cerca de quarenta mil
respostas. Os autores seguiram a sobrevivência dos médicos por meio de um
registro geral. Apresentei para os alunos apenas os dados sobre câncer de
pulmão – que são os mais conhecidos – porque não queria me estender demais
sobre os testes estatísticos utilizados. Pois um aluno me perguntou se eu não
percebia que os dados não tinham validade porque, segundo ele – em um estudo
desse tipo – era preciso apresentar todas as causas de morte. Como responder
com estatisquês a quem não sabe estatística?
E só mais um caso: em um seminário na USP,
apresentei os principais delineamentos experimentais dos ensaios clínicos que
comparam apenas dois grupos, que chamei de controle e tratado. Não havia tempo
para mais. Reconheço que os slides eram um pouco infantis, considerando o alto
nível intelectual dos doutores. Mas ao invés de diagnosticar essa falha, um
médico me perguntou porque eu chamava um grupo de “tratado” – quando se tratava de um trabalho experimental.
Realmente, o NIH (National Institute of Health) propôs usar, nesses
casos, o termo interventional group, mas não aboliu o termo treated
group, muito em uso. Só consegui dizer que Estatística não é um ramo
caudatário da Medicina (como também não e das ciências biológicas, das
engenharias, das ciências agrárias, das ciências sociais). Estatística é uma
ciência que anda com suas próprias pernas - tem teorias, técnicas, paradigmas.
E a terminologia de Estatística é usada em várias ciências; pode, portanto, ser
genérica. Não convenci. Só recebi um mavioso “tudo bobagem”, comentário que não comprei.
Referências
1. 13 of
the most stupid questions teachers have heard in the classroom.
https://www.joe.ie › life-style › 13-...
2. Cora Coralina Vintém de cobre: Meias
confissões de Aninha. São Paulo: Global Editora, 1997. Trecho do poema
Exaltação de Aninha (O Professor).
3. Vieira, Sonia. Como
escrever uma tese. Atlas, 6ª ed. 2009.
4. Descartes, René. O Discurso do
Método. Martins Fontes, 2009.
5. Vieira, Sonia. Como
elaborar um questionário. Atlas, 2009.
6. Chico Buarque. Partido Alto.
7. Di Cicco, M.E., Ragazzo, V., Jacinto, T. Mortality
in relation to smoking: the British Doctors Study. Breathe (Sheff). 2016 Sep; 12(3):
275–276. doi: 10.1183/20734735.013416
8. Doll R, Hill
AB. Smoking and carcinoma of the lung; preliminary report. Br Med J 1950; 2: 739–748. [PMC free article] [PubMed] [Google Scholar]